ONDE NASCE A COMIDA : O FUTURO DEPENDE DO SOLO SOB OS NOSSOS PÉS

Foto aérea do contorno da bacia de Coon Creek, em Wisconsin

Um mosaico de árvores, campos
e plantações delineiam o contorno
da bacia de Coon Creek, em
Wisconsin, nos Estados Unidos

Nossa boa terra-

Onde nasce a comida:

o futuro depende do

solo sob os nossos pés.



Em um dia quente de setembro, fazendeiros de toda a região estão reunidos em volta de máquinas enormes. Colheitadeiras, embaladoras, trituradoras, cultivadoras, semeadoras – en7 m, tratores para as mais diversas finalidades podiam ser vistos na Farm Technology Days, a feira de equipamentos agrícolas realizada todos os anos no estado americano de Wisconsin. Quando visitei a exposição no ano passado, a empresa John Deere estava apresentando aos visitantes o 8530: um trator que funciona sozinho, orientando-se por sinais de satélite. Eu estava feliz na cabine, aproveitando o ar-condicionado sem ter de me preocupar com nada; sob meus pés as imensas rodas de borracha conduziam a máquina por seu caminho.Os fazendeiros sorriam ao contemplar os tratores atravessando as plantações de cereais. No longo prazo, contudo, tais máquinas podem estar contribuindo para acabar com o próprio sustento deles. O solo do meio-oeste americano, abrangendo algumas das áreas mais férteis do mundo, é constituído de torrões soltos e heterogêneos, entremeados por muitos bolsões de ar. Máquinas enormes e pesadas, como as colheitadeiras, amassam a terra molhada e a transformam em uma camada indiferenciada e quase impermeável – em um processo conhecido como “compactação”. As raízes não conseguem penetrar em solo compactado; tampouco a água escoa terra adentro e, em vez disso, corre pela superfície, provocando erosão. E, como a compactação às vezes ocorre em profundidade, pode levar décadas para ser revertida. Conscientes do problema, os fabricantes de implementos agrícolas instalam pneus enormes em suas máquinas, pois essa é uma maneira de amenizar o impacto sobre o solo. Além disso, os fazendeiros passaram a usar dispositivos de GPS para manter os veículos em trajetos específicos, deixando intocado o resto do terreno. Mesmo assim, esse tipo de compactação continua sendo um problema grave – pelo menos naqueles países em que os produtores rurais podem desembolsar 400 000 dólares por uma colheitadeira.
Lamentavelmente, a compactação é apenas um item, e pequeno, no mosaico de problemas inter-relacionados que afligem os solos em todo o planeta. Nos países em desenvolvimento, uma extensão cada vez maior de terras aráveis está sendo eliminada pela erosão e deserti7 cação de origem humana, numa tendência que põe em risco a existência de 250 milhões de pessoas. No primeiro – e ainda o mais abrangente – levantamento sobre o abuso do solo em escala global, cientistas do International Soil Reference and Information Centre (Isric, “Centro Internacional de Informação e Referência do Solo”), uma fundação independente de pesquisa com sede nos Países Baixos, estimam que a humanidade já ocasionou a deterioração de quase 20 milhões de quilômetros quadrados de terras. Em outros termos, a nossa espécie vem sistematicamente destruindo uma área equivalente ao território dos Estados Unidos e do Canadá juntos.
A escassez de alimentos neste ano, causada em parte pela contínua redução da qualidade e da quantidade de solos cultiváveis do planeta, já provocou tumultos na Ásia, na África e na América Latina. Até 2030, 8,3 bilhões de pessoas estarão vivendo na Terra. Segundo estimativas da FAO, a organização das Nações Unidas para agricultura e alimentação, os agricultores terão de produzir quase 30% a mais de cereais do que os níveis atuais para alimentar toda essa gente. “No longo prazo, vamos esgotar nossa capacidade de cultivar o solo”, comenta o geólogo David R. Montgomery. Em todo o mundo, porém, pesquisadores e agricultores estão descobrindo que até mesmo as terras mais deterioradas podem ser recuperadas. A vantagem disso estaria na possibilidade não só de se combater a fome mas também de se enfrentar questões como escassez de água ou aquecimento global – que poderia ser reduzido de modo signi3 cativo por meio do emprego de vastas reservas de carbono na reengenharia dos terrenos ruins do mundo. “Estabilidade política, qualidade do meio ambiente, fome e pobreza – tudo isso tem a mesma raiz”, diz o cientista Rattan Lal. “A solução para todos esses problemas está na recuperação do recurso mais básico que existe, ou seja, o solo.”
No outono passado, quando conheci Zhang Liubao em seu vilarejo na região central da China, ele estava revolvendo os terraços erodidos de seu terreno com uma pá – algo que vem fazendo depois de cada chuva há mais de 40 anos. Na década de 60, Luibao foi enviado ao vilarejo de Dazhai, 320 quilômetros a leste, para se familiarizar com o Método Dazhai – um sistema de cultivo que, de acordo com os líderes chineses, iria transformar a agricultura do país.
Dazhai está situada em uma anomalia geológica conhecida como o planalto de Loess. Ao longo de incontáveis eras, os ventos varreram os desertos a oeste, carreando saibro e areia para o centro da China. Essa poeira foi se depositando e acabou cobrindo a região com imensos montes de sedimento compacto – chamado de oess pelos geólogos – cuja profundidade chega a centenas de metros em determinados pontos. O planalto de Loess da China estende-se por uma área equivalente à soma da França, da Bélgica e dos Países Baixos. Durante séculos, as camadas de sedimentos vêm sendo carregadas pelo rio Amarelo – um processo natural que resultou, estimulado pelo Método Dazhai, naquele que pode ser considerado o mais grave problema de erosão do solo em todo o mundo.
Depois de Dazhai ter sido devastado por inundações em 1963, o secretário local do Partido Comunista recusou-se a aceitar qualquer tipo de ajuda do governo central – em vez disso, comprometeu-se a reconstruir o povoado e torná-lo ainda mais produtivo. Logo começaram a ser colhidas safras excepcionais, atraindo a atenção das autoridades em Pequim, que enviaram técnicos à região a 3 m de aprenderem com as práticas adotadas ali. E encontraram camponeses usando pás para cultivar em terraços, de cima a baixo, todas as colinas de loess e dedicando os momentos de descanso à leitura do livrinho vermelho com os pensamentos revolucionários de Mao Tsé-tung. Encantado com tal fervor, o líder máximo chinês enviou ao local milhares de representantes de outros vilarejos, entre os quais Zhang Liubao. Ele aprendeu então que seria crucial para a China que todo o pedaço de terra disponível fosse cultivado. E, sendo aquela a China maoísta, não faltaram palavras de ordem para indicar o caminho: “Remova montanhas, aterre des3 ladeiros e crie planícies!”, “Derrube florestas e abra novas áreas de cultivo!”, “Mire-se no exemplo de Dazhai!”
Zhang Liubao retornou a seu vilarejo natal, Zuitou, muito entusiasmado. Em Zuitou, contou ele, a pobreza era tal que seus moradores só conseguiam comer bem uma ou duas vezes por ano. Os agricultores locais dispersaram, derrubando as pequenas árvores que cobriam as encostas e as transformando em estreitos terraços. Em seguida, plantaram painço em todas as superfícies planas recém-criadas. Apesar da fome, a população local trabalhava o dia todo e depois acendialamparinas para prosseguir noite adentro. No fim de tudo, conseguiram ampliar a área de cultivo de Zuitou em cerca de um quinto – um aumento excepcional em um lugar tão pobre.
Infelizmente, “os terraços também criaram um círculo vicioso”, de acordo com Vaclav Smil, um geógrafo que há muito vem estudando o meio ambiente na China. As paredes dos socalcos em Zuitou, que não passavam de sedimentos compactados, desmoronam a todo momento. Mesmo quando não há erosão das plataformas, as chuvas levam embora os nutrientes e a matéria orgânica que há no solo. Após um aumento inicial, a produtividade do terreno vem decaindo cada vez mais. Para manter o nível de produção, os agricultores desmataram mais encostas e construíram outros terraços, os quais por sua vez acabaram sendo destruídos pela chuva.

As conseqüências foram terríveis. A quebra de safras por causa de solos cada vez piores forçou uma enorme quantidade de agricultores a migrar. Em parte por esse motivo, Zuitou perdeu metade de sua população. “Esse deve ser um dos maiores desperdícios de mão-de-obra já ocorridos”, comenta Smil. “Dezenas de milhões de pessoas foram obrigadas a trabalhar dia e noite em projetos que uma criança teria visto que não passavam de terrível estupidez.”Diante da catástrofe, a República Popular da China lançou programas para interromper o desmatamento. Em 1981, Pequim ordenou que todo cidadão que desfrutasse de boa saúde e tivesse mais de 11 anos de idade “plantasse de três a cinco árvores por ano”, onde quer que fosse possível. As autoridades chinesas também iniciaram o que talvez seja ainda hoje o maior programa ecológico do mundo, o projeto dos Três Nortes: uma faixa de árvores, estendendo-se por 4,5 mil quilômetros, nas regiões norte, nordeste e noroeste do país, e incluindo a borda do planalto de Loess. Com sua conclusão prevista para 2050, essa “Grande Muralha Verde” irá, em teoria, arrefecer os ventos que estão por trás tanto da desertificação como das tempestades de areia.
Apesar do objetivo ambicioso, tais esforços não contemplam a degradação do solo, maior legado do Método Dazhai. O reconhecimento disso era algo politicamente difícil, pois tinha de ser feito sem admitir os erros de Mao. Apenas na última década, Pequim modificou sua política agrícola, substituindo o Método Dazhai por algo que poderia ser chamado de “Método Gaoxigou”.
Gaoxigou (ravina Gaoxi) fica a oeste de Dazhai, na outra margem do rio Amarelo. Seus 522 moradores vivem em yaodongs – cavernas escavadas como ninhos de andorinhas nas íngremes encostas em torno do vilarejo. A partir de 1953, os agricultores abandonaram Gaoxigou e, por meio de esforços heróicos, construíram terraços de cultivo não só nas encostas de morros mas em montanhas inteiras, fatiando-as como bolos de casamento com centenas de degraus, cada qual coberto por plantações de painço, sorgo e trigo. Introduzindo um padrão logo difundido por toda parte, a produção agrícola deu um salto até que o Sol e a chuva crestaram e destruíram o solo nos terraços escalvados. Para capturar o loess carregado pela erosão, o vilarejo construiu diques de terra, que bloquearam as ravinas, na expectativa de criar novos campos aráveis à medida que eles ficassem cheios de sedimentos. Mas, com pouca vegetação para reduzir a força da água, em “todas as estações chuvosas os diques se rompiam”, diz Fu Mingxing, secretário regional da Educação. No fim, os moradores locais se convenceram de que “teriam de proteger o ecossistema, o que significa proteger o solo”.
Hoje, muitos dos socalcos que os habitantes de Gaoxigou escavaram no loess estão retornando a seu estado original. No que denominam de sistema “três-três”, os agricultores voltaram a semear um terço de suas terras finas encostas mais íngremes e vulneráveis à erosão – com gramíneas e árvores, as barreiras naturais contra a erosão. Outro terço das terras foi destinado a pomares de espécies aproveitáveis. No terço final, sobretudo nos lotes no leito da ravina que haviam sido enriquecidos pela erosão anterior, o cultivo foi intenso.
Em 1999, as autoridades centrais anunciaram que pretendiam difundir o modelo de Gaoxigou por todo o planalto de Loess. O Programa de Conversão de Encostas incentiva os agricultores a transformar de volta em campos, pomares ou J orestas a maioria de suas terras em encostas muito íngremes, em troca de quantidade anual de sementes e pequena soma de dinheiro ao longo de oito anos. Até 2010, esse programa poderia ser estendido a mais de 210 mil quilômetros quadrados, grande parte dos quais no planalto de Loess.
No entanto, os esquemas grandiosos concebidos pelos burocratas na remota Pequim não se traduzem com facilidade em locais como Zuitou. Autoridades provinciais e regionais são recompensadas sempre que plantam a quantidade de árvores prevista no plano, independentemente de terem escolhido espécies adaptadas às condições locais (ou de darem ouvido aos cientistas que, para começo de conversa, consideram inapropriado o plantio de árvores em campos abertos). O resultado é previsível, como pude constatar em estradas secundárias duas horas ao norte de Gaoxigou: renques de árvores mortas, plantadas em pequenas valetas como escamas de peixe, enfileiravam-se à beira das estradas. “Todo ano plantamos árvores”, comentavam os lavradores, “mas elas não sobrevivem.”
Alguns produtores rurais no planalto de Loess queixaram-se de que haviam sido orientados para plantar amendoeiras, mas que agora o mercado estava inundado dessa semente. Outros resmungaram que os planos de Pequim estavam sendo deturpados por autoridades locais que deixavam de repassar os subsídios aos agricultores. Outros ainda não sabiam que a orientação agora era para que deixassem de cultivar painço; sem falar naqueles que não tinham idéia do significado do termo “erosão”. A despeito de todas as recomendações de Pequim, muitos dos agricultores continuavam a plantar nas encostas.

Em algum momento na década de 70, a palavra “Sahel” virou sinônimo de fome, miséria e catástrofe ambiental. Em sentido estrito, porém, o termo designa a zona semi-árida entre o deserto do Saara e as florestas úmidas da África Central. Até a década de 50, o Sahel estava esparsamente povoado. Porém, quando houve uma explosão demográfica, a região passou a ser cultivada de modo mais intensivo. E por muito tempo os problemas foram mascarados por um período incomum de muita chuva. Mas aí veio a seca. Os piores efeitos ocorreram em duas ondas – uma no início dos anos 70 e outra, ainda mais grave, no começo da década seguinte – e estenderam-se desde a Mauritânia, na costa atlântica, até o Chade, bem no centro do continente. Mais de 100 mil homens, mulheres e crianças morreram durante a fome que se seguiu – e talvez as vítimas fatais tenham sido bem mais numerosas.
“Aqueles que tinham condições de partir foram embora”, diz Mathieu Ouédraogo, um especialista em desenvolvimento em Burkina Fasso, um país sem saída para o mar e situado no âmago do Sahel. “Os únicos que - caram aqui não tinham nada – nem sequer o su- ciente para ir embora.”
Entre os cientistas, ainda não há consenso quanto ao motivo pelo qual o Sahel deixou de ser savana e se tornou uma região tão árida. Seja qual for a causa, as conseqüências são óbvias: fustigado pelo Sol escaldante e os fortes ventos, parte do solo vira uma massa pétrea que as raízes das plantas e a água da chuva não conseguem penetrar. Certa vez, um lavrador do Sahel permitiu que eu usasse uma picareta em sua plantação de painço: a sensação que tive era parecida com a de tentar abrir um buraco no asfalto.
Quando houve a seca, inúmeras organizações humanitárias internacionais acorreram ao Sahel. Muitas ainda continuam atuando por lá. Metade das placas em Niamei, a capital do vizinho Níger, parece estar anunciando programas das Nações Unidas, de algum país rico ou de mais uma ONG. Um dos maiores é o projeto Keita, iniciado há 24 anos pelo governo italiano na montanhosa região central do Níger. Seu objetivo é recuperar – em termos ecológicos, econômicos e sociais – 4 860 quilômetros quadrados de uma região árida e de solos degradados em que vivem 230 mil pessoas. Agrônomos e engenheiros italianos abriram 312 quilômetros de estradas pelas encostas, cavaram 684 poços em áreas pedregosas, ergueram 52 escolas em vilarejos e plantaram mais de 18 milhões de árvores. Com escavadeiras e tratores, trabalhadores construíram 41 açudes nas montanhas para captar a água das chuvas de verão. Para abrir buracos e plantar as mudas de árvores, Venanzio Vallerani projetou duas enormes máquinas escavadoras – descritas como “monstros” pelo ambientalista Amadou Haya, também vinculado ao projeto. Os trabalhadores carregaram essas máquinas até as colinas desprovidas de vegetação, encheram seus tanques de combustível e as colocaram para trabalhar. Rugindo nos planaltos, elas chegam a abrir até 1,5 mil buracos por hora.
No começo de uma manhã, Haya nos leva a um açude que armazena água de chuva no vilarejo de Koutki, a 20 minutos da sede do projeto Keita, por uma estradinha de terra. Um quarto de século atrás, Koutki era um participante secundário na tragédia do Sahel. A maioria de seus rebanhos havia morrido ou sido consumida. Não se via uma única folha de grama. Não se ouvia um único pássaro. As pessoas sobreviviam graças a punhados de arroz oferecidos por organizações humanitárias estrangeiras. No caminho para Koutki conhecemos um ex-soldado que havia ajudado a distribuir os alimentos. Seu rosto perdeu toda a expressão quando ele mencionou as crianças esfomeadas que vira. Hoje existem muralhas de árvores para bloquear os ventos, terraços baixos para o plantio de árvores e – leiras de pedras para controlar a enxurrada erosiva de água de chuva. O terreno em torno do açude continua seco, mas dá para imaginar que ele assegurará a sobrevivência da população local.
Com um orçamento superior a 100 milhões de dólares, o projeto Keita é bastante dispendioso – a renda per capita do Níger, baixa até mesmo para o Sahel, não passa de 800 dólares por ano. Mas o Sahel é vasto – só o Níger tem cerca de 1,5 mil quilômetros de uma extremidade a outra. A recuperação de parte dessa área exigiria somas enormes se fossem adotados métodos idênticos aos do projeto Keita. Em conseqüência, os críticos argumentam que não faz sentido prosseguir com os esforços pela restauração do solo em terras áridas. Em vez disso, melhor seria concentrar os recursos em terrenos mais promissores.
“Isso é um equívoco”, diz o geógrafo Chris Reij. Tendo trabalhado com colegas sahelianos por mais de três décadas, Reij chegou à conclusão de que os próprios agricultores conseguiram vencer o deserto em muitas regiões. “Esse é um dos maiores êxitos ecológicos da África”, diz ele, “e um exemplo para o resto do mundo.” Mas a verdade é que quase ninguém se deu conta disso ou atribuiu a devida importância ao fato.
Em Burkina Fasso, Mathieu Ouédraogo acompanhou o processo desde o início. Ele reuniu os agricultores dessa região e, já em 1981, testavam juntos técnicas para recuperação do solo, algumas das quais tão tradicionais que Ouédraogo ouvira falar disso quando estava na escola. Uma delas é conhecida como cordons pierreux, “cordões pedregosos”: longas – leiras de pedras do tamanho de um punho grande. Interrompida em seu avanço por elas, a água das chuvas se espalha sobre o solo crestado por tempo su- ciente para impregná-lo. E o cordão pedregoso logo se torna uma linha de vegetação que retarda ainda mais a água. Uma quantidade maior de sementes brota na borda que primeiro recebeu a água. Gramíneas dão lugar a arbustos e árvores cujas folhas, ao cair, tornam mais rico o solo. Em poucos anos, uma simples - leira de pedras consegue restaurar todo um campo.

Por algum tempo, Ouédraogo trabalhou com um agricultor chamado Yacouba Sawadogo. Inovador e com idéias próprias, Sawadogo não tinha a menor intenção de deixar a região em que vivia com suas três esposas e 31 - lhos. Sawadogo foi um dos lavradores que colocaram cordons pierreux em seus campos. No entanto, durante a estação seca, ele também abriu em seus campos milhares de buracos, com 20 centímetros de profundidade cada um – zaï, como são chamados –, uma técnica que aprendera com seus pais. Em cada um desses buracos, Sawadogo pôs um pouco de estrume. Este atraiu os cupins, que digeriram a matéria orgânica, tornando seus nutrientes mais assimiláveis pelas plantas. Igualmente importante, insetos abriram canais no subsolo. Quando vieram as chuvas, a água concentrou-se nos orifícios e escorreu pelos canais, penetrando mais fundo na terra. Em cada um desses buracos, Sawadogo plantou árvores. “Sem árvore, não há fertilidade no solo”, resume ele. E elas desenvolveram-se no terreno mais solto e úmido dos zaï. Pedra por pedra, buraco por buraco, Sawadogo transformou 20 hectares de terra estéril na maior mata particular em uma região de centenas de quilômetros.
Graças ao zaï, conta Sawadogo, ele tornou-se quase que “o único agricultor desde aqui até o Mali que plantava algum painço”. Seus vizinhos logo " caram interessados. Sawadogo então formou uma associação que promove a técnica. Centenas de lavradores acorrem para vê-lo abrir os buracos com sua enxada. Quanto mais gente trabalhava o solo, mais fértil ele se tornava.
No país vizinho, o Níger, registrou-se sucesso ainda maior, conta o especialista em , florestas Mahamane Larwanou. Quase sem apoio nem orientação de governos ou ONGs, os agricultores locais usaram suas pás e enxadas para recuperar nada menos que 5 milhões de hectares de terra. A economia, tanto quanto a ecologia, é a chave do êxito no Níger. Na década de 90, o governo do país, que distribuíra lotes de maneira totalitária, passou a permitir que os lavradores exercessem maior controle sobre os seus terrenos. E estes acabaram por se convencer de que podiam investir na terra sem que houvesse risco de perdê-la mais adiante. Associada a técnicas rústicas, como as do zaï e do cordons pierreux, a reforma agrária ajudou os moradores rurais a tornar-se menos vulneráveis às , utuações do clima. Mesmo em caso de seca muito forte, aponta Larwanou, os nigerinos “não sentiriam o seu impacto, tal como ocorreu em 1973 ou 1984”.
Já Burkina Fasso não se recuperou tanto quanto o Níger. O relato de Sawadogo sugere uma possível explicação. Enquanto os lavradores nigerinos assumiram o controle de seus terrenos, em Burkina Fasso eles não são donos de seus lotes, mas costumam arrendá-los de proprietários que a qualquer momento podem cancelar o negócio. Além disso, de modo a criar uma fonte de renda para as cidades, o governo central permite que os municípios anexem e depois vendam as terras em suas periferias – sem compensar de forma adequada as pessoas ali estabelecidas.
O vilarejo de Sawadogo está situado a 5 quilômetros de Ouahigouya, uma cidade de 64 mil habitantes. Entre as propriedades mais valiosas incorporadas ao patrimônio de Ouahigouya está a mata de Sawadogo. Agrimensores já percorreram toda a propriedade e a dividiram em lotes de 400 metros quadrados, delimitados por pesadas estacas. Na condição de proprietário original, Sawadogo terá direito a ficar com um lote; seus " lhos mais velhos também irão receber terrenos. Mas todo o resto será posto à venda, talvez no ano que vem. Ele nada pôde fazer quando os funcionários municipais martelaram uma das estacas em seu próprio quarto de dormir. O limite de outro terreno passa através da sepultura de seu pai. Yacouba Sawadogo está tentando reunir dinheiro su" ciente para comprar a mata na qual investiu toda a sua vida. Como tornou a terra valiosa, o preço é alto demais para ele: cerca de 20 000 dólares. Enquanto isso, só lhe resta cuidar de suas árvores. “Ainda me sobra coragem suficiente para ter esperança”, diz.
Wim sombroek começou a aprender sobre o solo ainda criança, durante o hongerwinter – o período de fome que afligiu os Países Baixos durante a Segunda Grande Guerra, no inverno de 1944–45, quando morreram cerca de 20 mil pessoas. Sua família sobreviveu graças a um minúsculo lote de plaggen: um terreno enriquecido por décadas de fertilização. Se seus antepassados não tivessem mantido aquele pedaço de terra, me disse ele, toda a família poderia ter morrido.
Na década de 50, no começo de sua carreira como pesquisador de solo, Sombroek viajou pela Amazônia. Para sua surpresa, encontrou bolsões ricos e férteis. Como bem sabe todo estudante de ecologia, os solos da floresta úmida da Amazônia são frágeis e empobrecidos. Se a cobertura de árvores é eliminada para a formação de áreas de cultivo, a terra fica exposta à força das chuvas e do Sol, que leva embora a pequena quantidade de minerais e nutrientes, cozinhando o restante em algo parecido com tijolo – um “deserto úmido”. Essa inevitável deterioração da terra tornaria impossível a agricultura em larga escala nas zonas equatoriais. A despeito disso, dispersos à beira do rio Amazonas, Sombroek descobriu grandes trechos da chamada “terra preta de índio”. Tal como a rica e escura plaggen de sua infância, esse tipo de terreno constituía promissora base para a agricultura numa região em que supostamente ela seria impossível. Em 1966, publicou um livro, Solos Amazônicos, no qual realizou o primeiro estudo mais profundo da terra preta.
A maioria dos programas de recuperação de solos, como os da China e do Sahel, procuram fazer com que o terreno deteriorado readquira sua condição anterior. Mas, em boa parte dos trópicos, seu estado natural já é de baixa qualidade – e esse é um dos motivos pelos quais tantos países tropicais são pobres. Sombroek concluiu que a terra preta poderia mostrar aos cientistas como tornar os solos mais férteis.

O pesquisador jamais verá seu sonho concretizado – ele morreu em 2003. Mas Sombroek ajudou a formar uma equipe multinacional com o objetivo de investigar a origem e a função da terra preta. Entre os seus membros está o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da Universidade de São Paulo, que conheci pouco tempo atrás em uma plantação de mamão-papaia a 1,5 mil quilômetros da foz do Amazonas, diante da cidade de Manaus. Sob as árvores topei com o sinal inegável da investigação arqueológica: valetas quadriculadas. Nessas trincheiras, a terra preta, tão escura quanto o café mais retinto, estendiase até quase 2 metros de profundidade. Desde a superfície até a camada inferior, o solo estava repleto de fragmentos de cerâmica pré-colombiana. Era como se os primeiros habitantes das margens do rio tivessem promovido imensa e turbulenta festa, durante a qual quebraram todos os pratos e vasilhas, e depois enterrado tudo.
A terra preta é encontrada apenas ali onde havia pessoas, o que significa que se trata de um solo artificial, resultante da atividade humana anterior à chegada dos europeus. O objetivo de Neves é descobrir como – e por que – os povos amazônicos obtiveram esse tipo de terreno, o qual apresenta em abundância minerais essenciais, como fósforo, cálcio, zinco e manganês, e que costumam ser escassos na maioria dos solos tropicais. Seu ingrediente mais intrigante é o carvão vegetal – uma quantidade enorme do elemento que dá a cor escura a esse tipo de terra.
“Ao contrário do terreno tropical comum, a terra preta continua fértil após séculos de exposição ao Sol e à chuva dos trópicos”, comenta o pesquisador Wenceslau Teixeira, um especialista em solos da Embrapa, a empresa federal de órgãos de pesquisa agrícola no Brasil. Essa extraordinária resistência, segundo ele, foi comprovada nas instalações da Embrapa em Manaus, onde os cientistas testam novas variedades de cultivo em plantações experimentais de terra preta. “Durante 40 anos, foi aqui que eles plantaram arroz, milho, mandioca, feijão e outros vegetais”, conta Teixeira. “E todas plantas que supostamente não podiam ser cultivadas nos trópicos – safras anuais sempre expostas aos raios solares e à água das chuvas.” Agora Teixeira vem realizando experimentos com o cultivo de banana e diversas safras típicas dos trópicos.
Sombroek perguntava a si mesmo se os agricultores atuais seriam capazes de produzir a própria terra preta – “terra preta nova”, como ele a chamava. Um dos elementos cruciais da terra preta é o carvão vegetal, obtido da queima de plantas e outros detritos orgânicos em baixa temperatura. Em março, uma equipe de pesquisadores liderada por Christoph Steiner relatou que a mera adição de carvão moído e fumaça líquida a solos tropicais normalmente ruins provoca um “crescimento exponencial” na população microbiana – dando início ao ecossistema subterrâneo essencial à fertilidade. Os solos tropicais logo perdem sua riqueza microbiana quando passam a ser cultivados. O carvão proporciona um hábitat aos micróbios em parte porque os nutrientes ficam presos, isto é, não são levados embora.
A agricultura responde por mais de um oitavo da produção humana de gases associados ao efeito estufa. O cultivo intenso da terra libera dióxido de carbono ao expor matéria orgânica antes no subsolo. Sombroek argumentou que a criação de terra preta em todo o mundo consumiria tanto carvão vegetal rico em carbono que compensaria suficientemente a liberação na atmosfera do carbono presente na terra. De acordo com o geógrafo William I. Woods, a terra preta rica em carvão apresenta de dez a 20 vezes mais carbono que os solos tropicais típicos, e este é um carbono que pode ser enterrado a uma profundidade bem maior. No ano passado, outro especialista, Johannes Lehmann, publicou uma estimativa na revista Nature segundo a qual, se tomássemos os resíduos de reflorestamento, de campos agrícolas em descanso e de safras anuais e os transformássemos todos em carvão, isso compensaria cerca de um terço das emissões dos Estados Unidos ocasionadas pela queima de combustíveis fósseis. Na verdade, Lehmann e dois de seus colegas acreditam que o uso de combustíveis fósseis pela humanidade como um todo poderia ser compensado pelo seqüestro de carvão na terra preta nova.
Não vai ser nada fácil tornar realidade tais esperanças. Para começar, não é tarefa simples identificar os microorganismos associados à terra preta. E ninguém sabe com certeza a quantidade de carbono que pode ser armazenada no solo – alguns estudos sugerem que talvez haja um limite. No entanto, Woods considera boas as possibilidades de uma compensação vantajosa. “Daqui para a frente, vamos ouvir muito mais a respeito da terra preta”, diz ele.
Percorrendo os caminhos da fazenda que abriga a feira de tecnologia agrícola em Wisconsin, não foi difícil para mim imaginar o que tanto preocupou Jethro Tull – não a banda de rock dos anos 70, claro, mas o Jethro Tull original, o reformador da agricultura no século 18. Sob os meus pés, o solo das planícies fora esmagado por tratores e colheitadeiras a ponto de virar uma superfície peculiar que mais parecia o revestimento de borracha usado em torno de piscinas.
Tull conhecia a solução: basta não arar sempre no mesmo lugar. Na verdade, cada vez mais os agricultores nem sequer estão usando arado – adotando, em vez disso, um sistema denominado “cultivo sem lavrar”. Todavia, outros implementos continuam a crescer em tamanho e peso no mundo todo. Na Europa, estima-se que a compactação do solo ajuda a degradar cerca de 33 milhões de hectares de terras agrícolas.

O motivo final pelo qual a compactação continua a afligir as nações ricas é o mesmo pelo qual outras formas de deterioração do solo afligem os países mais pobres: as instituições políticas e econômicas não estão preparadas para dar atenção a esse tipo de problema. As autoridades chinesas que são recompensadas pelo plantio de árvores, independentemente de estas sobreviverem ou não, não são muito diferentes dos fazendeiros americanos do meio-oeste que continuam a usar enormes colheitadeiras porque não podem contratar gente para operar várias máquinas menores.
Perto da estrada compactada da fazenda em Wisconsin havia uma demonstração de cultivo da terra com arados puxados por cavalos. A terra revolvida pelos discos do arado era escura, úmida e brilhante – o fértil solo lavrado que fez a fama do meio-oeste. O fotógrafo Jim Richardson deita-se de bruços para captá-lo com suas lentes. Logo um grupo se reúne em torno de nós. Alguém explica que estamos fotografando aquela terra. “Mas qual o motivo de tanto interesse?”, pergunta, perplexa, uma mulher.
Quando conto essa história, por telefone, ao geólogo David Montgomery, eu quase o ouço sacudindo a cabeça. “Com 8 bilhões de pessoas no planeta, é bom que a gente comece a se interessar pelo solo”, comenta ele. “Não podemos mais tratá-lo como algo sem importância.”

por Charles C. Mann

Charles C. Mann é correspondente das revistas Atlantic Monthly e Science. Jim Richardson é cidadão honorário da cidade de Cuba, no estado do Kansas.

Fonte:http://viajeaqui.abril.com.br/materias/nossa-boa-terra?pw=6

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